terça-feira, 23 de abril de 2024

Artigo: A paixão corporal de Santa Dulce dos Pobres

Foto: Divulgação

Por Davi Lemos*

“De fato, ela tinha posto Deus em primeiro lugar e havia acolhido sem reservas no seu coração o desígnio do amor que o Senhor tinha escolhido para ela. Tinha aceitado fazer uma caminhada que não era fácil, porque a fé no Senhor exige coerência, responsabilidade, renúncias e aceitação do sofrimento”.

Essas palavras escritas pelo então cardeal-arcebispo de Milão, Dom Dionigi Tettamanzi (1934 – 2017), fazem parte de um comentário à vida de Santa Gianna Beretta Molla (1922 – 1962), mas podem ser destinadas a todos os santos católicos, a exemplo de Santa Dulce dos Pobres, celebrada nesta sexta-feira (13) pelos católicos e principalmente pelos baianos.

Gianna foi uma mãe que, diante de uma doença grave, preferiu levar até o final uma gravidez que gerou a quarta filha, Gianna Emanuela, mas a levou à morte aos 39 anos – Gianna era médica e não aceitou a sugestão de colegas para que realizasse um aborto para salvar a própria vida. Num paralelo, Dulce também ouvia dos médicos que não se esforçasse tanto dada a imensa debilidade corporal que a acompanhou desde os 18 anos. O médico Taciano Campos, que atendeu Irmã Dulce por mais de 30 anos e foi um dos mais dedicados colaboradores de Irmã Dulce em suas obras, disse-me certa vez que ela era um “milagre ambulante”.

Gianna não se tornou santa porque deu a vida pela filha, recusando-se ao aborto, nem Irmã Dulce foi considerada santa devido à extraordinária obra que fez – os santos são assim declarados normalmente pela vida intensa e inteiramente dedicada a Cristo a quem têm como Esposo. Em uma entrevista que fiz em maio de 2014 com o teólogo polonês Jaroslaw Merecki, ele salientou que a “paixão corporal” vivida por Irmã Dulce, principalmente a forma como vivenciou a doença, revela também para nós o sentido da própria Paixão de Cristo, vivida na entrega por amor.

“Eu acredito que experimentar a debilidade no próprio corpo a levou a compreender de forma mais profunda a Paixão de Cristo. O próprio Cristo quis experimentar essa fraqueza, sofrimento e morte. Então a Beata Dulce, que se deu a Cristo como esposa, realizou sua doação esponsal no serviço dos pobres, onde conheceu seu esposo, Cristo”, disse Merecki, em 2014. Disseram Gianna e Dulce como a esposa do Cântico dos Cânticos (5, 8): “Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amado, que lhe haveis de dizer? Dizei-lhe que estou enferma de amor”.

Merecki, naquela entrevista, salientou que nossos corpos estão sujeitos à lei do mundo, que é a dispersão e a morte, mas recorda que “a medida própria do homem é a eternidade, e só o amor é eterno. Os santos experimentam essa verdade porque eles estão profundamente enraizados no amor de Deus”. O teólogo, naquela entrevista, salientou que, mesmo vivendo a doença grave, Dulce foi ao encontro do seu Amado naqueles que eram doentes, às vezes menos doentes que ela.

“Normalmente, se não somos místicos, encontramos Jesus não diretamente, mas indiretamente, através de nossos irmãos e irmãs”, disse o teólogo Jaroslaw Merecki, que completou a respeito de Irmã Dulce: “Com o seu trabalho inspirado no amor de Cristo, ela foi capaz de transformar o que é fraco no que é forte – porque o amor é mais forte que qualquer fraqueza ou barreiras”.

Naquela mesma época conversei com o pneumologista Almério Machado, que me explicou o quadro clínico de Irmã Dulce, já muito grave muitos anos antes de sua morte ocorrida numa sexta-feira de 13 de março de 1992. Machado, que era professor da Ufba, chegou a levar exames da Santa dos Pobres a colegas médicos que, ao ver os resultados, concluíam que só poderia estar em uma UTI ou no mínimo acamada. Mas, para a surpresa dos colegas, ele dizia que aqueles eram os exames daquela religiosa que ainda andava por Salvador a cuidar de pacientes.

Doutor Almério disse então que Irmã Dulce era para ele um “mistério”. A Santa dos Pobres tinha somente 30% da capacidade pulmonar, em muitas noites precisava de oxigênio – muito bem humorada, dizia que tinha passado a madrugada na boate, devido à fumaça do oxigênio. Irmã Dulce tinha uma quadro grave de bronquioectase, que atingia os dois pulmões, de cima a baixo. Como disse Almério Machado: bronquioectase bilateral extensa. Irmã Dulce não sofria de enfisema, como dito erroneamente em muitas matérias e reportagens, às vezes até por padres.

Diante de tantas barreiras, manter tal matrimônio com o Senhor parecia ser algo insuportável. Recorrendo a uma passagem da vida da mística e doutora da Igreja, Santa Teresa D´Ávila (1515 – 1582), conta-se que ela, após ter um problema em uma carruagem, pergunta a Jesus por que coisas como aquelas lhe aconteciam. “É assim que trato meus amigos”, teria dito Jesus, ao que respondeu a sagaz espanhola: “por isso que tem tão poucos”.

Como diz o Evangelho proclamado na liturgia desta sexta-feira (13/08), o matrimônio é indissolúvel. É claro que, no texto de São Mateus, Jesus fala a respeito do matrimônio entre um homem e uma mulher, salientando que a permissão para o divórcio dada na era mosaica era devida à dureza do coração daqueles da época em que viveu Moisés. Dulce, Gianna e Teresa tinham corações dóceis assim como é o coração de Jesus, “manso e humilde”, como é dito no capítulo 11 do mesmo Evangelho de São Mateus.

Na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza e, principalmente no caso de Santa Dulce, na saúde e na doença, os santos vivem essa fidelidade ao Esposo, numa verdadeira “loucura de amor”, como ressaltou o teólogo Jaroslaw Merecki. Como aquele esposa do Cântico dos Cânticos, Santa Dulce também exclamou: “Eu sou do meu amado e meu amado é meu”.

*Davi Lemos é jornalista

13 de agosto de 2021, 17:20

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