quarta-feira, 12 de março de 2025

Depois do futebol e do Carnaval, também somos o país do cinema?

Foto: Ulisses Dumas/Sufotur

Carlos Baumgarten*

Um clima de Copa do Mundo tomou conta do Brasil em pleno domingo de Carnaval. Era corpo e alma na avenida, coração e olhos na tela. Como numa disputa de pênaltis, milhões aguardavam ansiosos o resultado que trouxe ao país o primeiro Oscar. Mas e agora? O Brasil, além do futebol e do Carnaval, é também o país do cinema?

Desde a sua primeira aclamação em Veneza, ‘Ainda Estou Aqui’ evidenciou ao grande público a complexidade da jornada de um filme. E estamos falando de um filme com acesso a recursos financeiros razoáveis (que não foram públicos, diga-se de passagem). Foram sete anos de pré-produção, produção e pós-produção até que o longa chegasse aos cinemas.

Além disso, foram seis meses rodando festivais pelo mundo e conquistando prêmios importantes, como o de Melhor Roteiro, no Festival de Veneza, o de Melhor Atriz para Fernanda Torres, no Globo de Ouro, e, o mais recente, o Oscar de Melhor Filme Internacional, eventos que ajudam a projetar ainda mais o longa brasileiro para as vitrines do mundo.

E direto do centro da indústria hollywoodiana, o Oscar trouxe ao domingo de Carnaval esse clima contagiante de Copa do Mundo, com um filme que alcançou 5 milhões de espectadores nos cinemas do país e que chegou de forma competitiva à premiação, disputando ainda duas das mais prestigiadas categorias daquela noite: Melhor Atriz, mais uma vez, para Fernanda, e Melhor Filme do Ano.

‘Ainda Estou Aqui’ tornou-se um novo marco de reconhecimento do cinema nacional pelo seu próprio país, num processo de reconstrução recente do setor cultural pós-pandemia, mas que tem sua base iniciada pelo movimento de retomada nos anos 1990. E o ápice, na época, havia sido alcançado com o mesmo diretor, Walter Salles, e o filme ‘Central do Brasil’. A diferença para ‘Ainda Estou Aqui’ talvez se deva ao alcance da mensagem para além do que está no filme, em tempos de polarização política, à qual arte e cultura estão diretamente relacionadas.

Obras de arte possuem o desafio de olhar para os seus próprios tempos e, ainda assim, serem atemporais. O filme de Salles, inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva, consegue, a partir do resgate da memória de uma família, olhar para um Brasil que reverbera os riscos de um processo de ruptura democrática. Mas é também a história de uma mulher que luta para defender sua família, uma narrativa clássica, universal e, evidentemente, atemporal, mesmo com um período histórico-narrativo bem definido.

Como cravou o cineasta, professor e pesquisador Marcelo Ikeda, ‘Ainda Estou Aqui’ já nasceu clássico. Walter Salles sabia o que estava fazendo e onde queria chegar com o filme, o que não se resume, necessariamente, a premiações e conquistas internacionais. Acima de tudo, o filme se coloca como uma referência para o diverso cinema brasileiro e reacende debates sobre narrativas nacionais e acesso ao público às obras realizadas por nossos artistas.

‘Ainda Estou Aqui’ simboliza a conclusão de um arco dramático da retomada do cinema brasileiro, em uma jornada de altos e baixos. Essa jornada encontrou, a partir de meados dos anos 2000, não uma, e sim diversas formas – estéticas e narrativas – de se fazer filmes em um Brasil plural e com tantas histórias a serem contadas.

Mas, ao cinema brasileiro, ainda falta incentivo. Fortalecer a indústria cinematográfica perpassa também pelo acesso a recursos de financiamento, público e privado, oportunidades de coprodução internacional e tantas outras medidas que já se mostraram efetivas em países como Argentina, Espanha, França e no próprio Brasil. Junto a isso, é preciso pensar estratégias para fazer com que os filmes cheguem às telas, e mais: que atraiam as pessoas para a experiência coletiva nas salas de cinema, em plena era do streaming.

Temos cerca de 3,5 mil salas espalhadas pelos quatro cantos do Brasil. Em que pese os esforços das cotas de tela e os incentivos para ampliar o alcance, o cinema estrangeiro (leia-se: principalmente, o hollywoodiano) é ainda predominante nas salas de cinema por aqui. No último informe da Ancine, referente a 2023, houve registro de um aumento de quase 20% do público nos cinemas, mas os filmes nacionais atraíram apenas 3,2% dos espectadores, mesmo representando mais da metade das obras exibidas nas salas.

Importante dizer que, como relatou o cineasta e exibidor Cláudio Marques, do Cine Glauber Rocha, foi Salvador que iniciou a trajetória de ‘Ainda Estou Aqui’. Os produtores do filme escolheram um cinema de rua da capital baiana (o único além da Sala Walter da Silveira, gerida pelo Governo do Estado) para a sua primeira grande exibição no Brasil, ainda em setembro de 2024, no limite do prazo para o credenciamento ao Oscar. Depois da exibição no Glauber Rocha, o filme viria a estrear em circuito comercial somente em novembro.

Seja pela condução sóbria e competente de Salles, pela tour de force de Fernanda Torres ou pela abordagem a um tema sensível ao país, o fato é que ‘Ainda Estou Aqui’ tornou-se um fenômeno entre o público brasileiro. Mas o Brasil tem ainda um grande desafio em todas as frentes da produção cinematográfica.

Realizadores, distribuidores e exibidores enfrentam diversos obstáculos para fazer com que as jornadas dos cerca de 100 filmes produzidos por ano no país – muitos deles, independentes – possam ser concluídas. Os festivais se configuram como importantes janelas de exibição, mas ainda são restritos. É necessário que os filmes tenham chances de negociar suas estreias em circuito comercial. Os filmes precisam ser rentáveis para quem os faz, e acessíveis para quem quer ver, até porque ir ao cinema ainda custa caro no Brasil.

É importante que esse orgulho de um filme brasileiro não fique apenas como uma ressaca de Quarta-Feira de Cinzas ou que se repita somente quando chegarmos ao Oscar novamente. O frisson causado por ‘Ainda Estou Aqui’ e sua noite de Copa do Mundo em pleno Carnaval traz o momento ideal para reaquecer debates e incentivar, cada vez mais, o público brasileiro a descobrir e acessar o seu próprio cinema, o cinema feito agora e o cinema construído ao longo da história por tantos nomes. Aí sim, quem sabe, poderemos também passar a nos reconhecer como o país do cinema.

*Jornalista, cinéfilo nas horas vagas e, de tempos em tempos, participa de filmes independentes 

05 de março de 2025, 08:00

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