sexta-feira, 9 de maio de 2025

O Conclave e o conclave

Foto: Os cadeias na Capela Sistina / Vatican Media

Por Davi Lemos

O filme O Conclave é uma ode à incerteza ou, em outra perspectiva, uma ode ao descarte das certezas. A fé cristã avança por dois milênios a partir de uma certeza, ainda que misteriosa: a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo que, antes de ser martirizado, deixou um vigário, isto é, alguém que faria as vezes Dele em sua ausência: Simão, depois chamado Pedro.

Uma das frases mais celebradas da recente produção cinematográfica, feita por quem indisfarçavelmente deseja a continuidade de um pontificado como o de Francisco, foi a seguinte: “”A certeza é inimiga mortal da tolerância […] Que Ele nos conceda um papa que possa pecar, pedir perdão e siga em frente”.

Os cardeais reunidos a partir desta quarta-feira (7) para decidir quem sucederá Francisco bem sabem o que disse o divino fundador da Igreja, conforme a crença católica, e o que dizem as vozes de fora, “do mundo”, ou dos Judas internos. “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo”, dita por Cristo, não condiz com os apelos mundanos pela adaptação da Igreja.

Quando o cardeal do filme diz que a Igreja necessita de um papa que possa pecar, pedir perdão e seguir em frente, ele não diz nenhuma novidade para quem conhece a história da própria Igreja e do primeiro bispo de Roma, Pedro, cujo sucessor é escolhido a partir desta tarde. O pescador galileu negou o Cristo três vezes e, no último domingo, no Evangelho de João proclamado no rito latino, foi possível ver que Pedro é perdoado e segue em frente. Ao responder ao Senhor pela terceira vez se O amava, Pedro diz: “Senhor, tu sabes tudo: tu sabes que te amo”. Ao que Cristo responde: “Apascenta as minhas ovelhas”.

Após o pontificado de Francisco, o clamor ouvido a partir das falas dos cardeais é a “unidade”; mas qual seria a novidade quando se diz, desde os tempos bíblicos, para Pedro apascentar as ovelhas? Assim ocorreu na contenda descrita nos Atos dos Apóstolos quando Paulo, anteriormente chamado Saulo, e Tiago, chefe da comunidade de Jerusalém, divergiam sobre a circuncisão dos não-judeus que se convertiam ao cristianismo. Pedro, como narrado nos escritos, considerou que a lei judaica não deveria valer para os gentios convertidos – e, posteriormente, nem mais valeu para os judeus convertidos, uma vez que o batismo foi considerado, de lá até hoje, a porta de entrada na Igreja.

“Onde está Pedro, está a Igreja; onde está a Igreja, aí está Cristo!”. A afirmação possui cerca de 1700 anos e foi proferida por São Basílio Magno, doutor da Igreja, bispo de Cesareia, na Capadócia (atual Turquia). Nesta quarta-feira (7), a Igreja Católica iniciou a escolha do sucessor de Pedro e a missão de apascentar continua, permanece – há pouco, a chaminé da Capela Sistina emitiu a primeira fumaça preta. O filme apresentou o momento do conclave como pura conspiração política, com a fé quase escanteada, mas a Igreja jamais foi um local habitado somente por santos, mas por muitos pecadores, dispostos ao arrependimento ou não. Se não é certo ignorar os bons e maus aspectos humanos, desconsiderar a ação divina, a Graça, é também um equívoco.

Mesmo a interferência política pode levar um santo ao trono de Pedro. Foi o que, por exemplo, ocorreu na eleição de São Pio X, papa entre 1903 e 1914. Durante o conclave que o elegeu, o favorito era o cardeal Mariano Rampolla, mas, naquela época, reis católicos tinham o poder de vetar a eleição de alguns cardeais: e foi o que ocorreu. O imperador Francisco José I, da Áustria Hungria, havia vetado a eleição de Rampolla, o que foi informado, durante o Conclave, pelo cardeal polonês Jan Maurycy Puzyna de Kosielsko, de Cracóvia. Após eleito, São Pio X acabou com a possibilidade de veto dado a monarcas.

O cenário retratado em O Conclave pode ser considerado leve como uma comédia romântica se for considerado, por exemplo, o século X, quando na Igreja reinaram papas terríveis como Bento IX, coroado aos 20 anos, em uma época em que famílias “nobres” italianas erguiam e derrubavam papas através do poder monetário e das armas e não pela fé ou pela devoção. Sobre este sucessor de Pedro, disse um contemporâneo dele, São Pedro Damião: “Chafurdava na imoralidade, um demônio que veio do Inferno disfarçado de sacerdote. Apóstolo do Anticristo, raio disparado por Satanás, vara de Assur, filho de Belial, fedor do mundo, vergonha da humanidade”. As palavras ditas por Pedro Damião, certamente, não se encaixam somente a Bento IX, mas a muitos outros dentre os 266 ocupantes da Cátedra de Pedro.

O cardeal Ercone Consalvi (1757 – 1824), certa vez, ao observar a imensa podridão de muitos membros da Igreja, dos fieis ao clero, debochou de uma ameaça de Napoleão Bonaparte (1769 – 1821), quando o líder francês afirmou que destruiria a Igreja. “Então você vai conseguir uma proeza, pois nestes anos todos, nós, do clero, não conseguimos destruí-la. Se milhões de pecadores que estão dentro dela não conseguem, que dirá os de fora”.

A fala do cardeal francês ressoa ainda hoje quando se busca eleger o novo sucessor do Apóstolo Pedro, o mais improvável e inconstante dos apóstolos. Voltando ao Evangelho do último domingo, não querendo mais me alongar, concluo com o que disse Jesus ao antigo Simão: “Em verdade, em verdade te digo: quando eras jovem, tu te cingias e ias para onde querias. Quando fores velho, estenderás as mãos e outro te cingirá e te levará para onde não queres ir”. Pedro, que, após a morte de Cristo, decidiu retomar a pescaria, foi levado a ter outros projetos até estar em Roma, onde foi crucificado… de cabeça para baixo.

Um cardeal eleito papa nunca é como papa a imagem do cardeal de outrora.

Davi Lemos é jornalista

07 de maio de 2025, 17:13

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