sábado, 20 de abril de 2024

O último roubo de São Dimas

Foto: Reprodução

Davi Lemos*

Certamente Dimas não esperava cumprir a pena capital a que foi condenado ao lado de Jesus de Nazaré. Já havia, provavelmente, pensado nele ou ouvido falar daquele cuja fama de taumaturgo corria Jerusalém, de que até mortos reanimava ao pronunciar uma palavra ou um “vem para fora” a quem já cheirava mal após três dias em um sepulcro. Mas, naquela sexta-feira, Dimas, em um primeiro momento, somente via o retrato de um homem coberto de feridas das quais jorravam abundante sangramento – crucificado, desfigurado por tortura, despido com escárnio e chamado de “rei” enquanto recebia cusparadas. E o que o bom ladrão fez? Diante do nazareno indefeso, roubou o que de mais precioso e, ao menos naquele instante, escondido ele tinha: a Vida.

Esta ideia sobre o “roubo” de Dimas que, após aquele momento crucial, passou a ser chamado de santo e é considerado a primeira pessoa canonizada nas tradições católicas e ortodoxas do cristianismo, já estava presente na doutrina de São Bernardo de Claraval (1090 – 1153). “O que não posso obter por mim mesmo, aproprio-me com confiança do lado trespassado do Senhor, porque é misericordioso. Portanto, meu mérito é a misericórdia de Deus. Certamente não sou pobre de méritos, enquanto ele for rico de misericórdia. Se as misericórdias do Senhor são muitas (Sl 119, 156) também eu abundarei de méritos”, escreveu o santo doutor da Igreja Católica. “E o que será da minha justiça? O Senhor recordar-me-á só da tua justiça. De fato, ela é também a minha, porque tu és para mim justiça da parte de Deus” (cf. 1 Cor 1, 30).

Esta graça usurpada diante do “Cordeiro de Deus” que era imolado pode, segundo uma antiga tradição, ser uma retribuição do Cristo àquele homem que havia protegido a Sagrada Família quando José, Maria e Jesus estavam a caminho do Egito, fugindo da perseguição do Rei Herodes. Segundo essa tradição, Dimas e outros dois ladrões haviam assaltado a Sagrada Família, porém o bom ladrão pediu aos comparsas que nenhum mal fizessem àquela família e a deixasse seguir no caminho. Do alto da cruz vizinha ao do Cristo, Dimas não recordava daquele assalto, somente um dentre inúmeros outros como aquele que o condenou – ao lado do comparsa Gesmas – à terrível morte reservada sempre a criminosos perigosos ou a escravos. Aquele ato de Dimas realizado 30 anos antes não fora, entretanto, esquecido por Cristo.

Dimas é, de certa maneira, figura de todo ser humano que recebe de Cristo, por meio de sua Paixão, Morte e Ressurreição, uma graça imerecida, como explicou São João Crisóstomo (347 – 407). “As nossas espadas não estão ensanguentadas, não estivemos em agonia, não combatemos juntos, nem vimos a batalha, e eis que obtivemos a vitória. A luta foi sua, nossa a coroa. E porque a vencemos também nós, imitemos o que fazem os soldados nestes casos: com vozes de alegria exaltemos a vitória, entoemos hinos de louvor ao Senhor”. Dimas é ainda mais extraordinário que quaisquer outros santos, pois foi canonizado ainda em vida, na hora solene da redenção de todo o gênero humano ocorrida naquela Sexta-feira, segundo a crença cristã.

O Bom Ladrão, depois de vacilar (cf. Mt 27,44 – Mc 15,32), confessou a própria culpa, reclamou da injustiça contra o nazareno que só fez o bem, reconhecendo-o como rei e pedindo-lhe que lembrasse dele quando estivesse no seu reino (cf. Lc 23, 40-43). Sem sombra de dúvida, trata-se de um santo único, privilegiado, que mereceu a honra de ser canonizado em vida por Jesus Cristo. Os outros santos só foram solenemente reconhecidos quase mil anos depois, a partir do ano 999. A Igreja comemorava os mártires e confessores, mas sem uma declaração oficial e formal. Enquanto que a festa em honra de São Dimas já tinha 25 de março como data litúrgica.

Sobre a inesperada história de São Dimas, há o seguinte comentário de Santo Agostinho (354 – 430): “Eis aí, na Escritura, um caso de arrependimento no instante da morte, para que não nos desesperemos; porém, somente um, para que não presumamos”. O doutor católico reforça a admoestação de que não se deve gastar toda a vida presente em farras, roubos, etc, pois a hora da morte vem como um ladrão, sem aviso – o próprio Agostinho fez de sua conversão um clássico da literatura cristã com suas “Confissões”.

As personagens presentes nas narrativas da Semana Santa rendem reflexões das mais variadas como esta do “roubo santo” de Dimas. E é belo como a piedade cristã invoca-o em uma das orações que pedem a intercessão do Bom Ladrão: “Ó Dimas, fostes o bom ladrão que, roubando o céu e conquistando o coração agonizante e misericordioso de Jesus, vos tornaste o modelo da confiança e dos pecadores arrependidos”. Condenado à crucificação, Dimas desfruta da mesma Páscoa que é o centro da esperança cristã.

*Davi Lemos é jornalista

04 de abril de 2021, 15:19

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